quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

A vida, Londres, este momento de junho



Estou lendo “As Horas”, de Michael Cunningham, pela 15ª vez. Além de lindo, o livro é uma espécie de banquete pra ser devorado às pressas, lambuzando a boca, lambendo os dedos.

Minha relação com “As Horas” é obsessiva, nota-se. Em tempos remotos, bradei aos quatro ventos que se tratava de uma obra-prima. Hoje, macaco velho e bem vivido, percebi que a coisa é outra: “As Horas” é o livro da minha vida – e nada mais.

Descobri isso na 13ª leitura, quando, induzido pelas páginas 122 e 123, pus meu inconsciente pra fora e pude ver, quase pude tocar, coisas sobre mim que eu desconfiava, mas não sabia.

Tá, eu confesso que, antes dessa "experiência", eu havia "experimentado" um monte de coisa na casa do Rodrigo. Abaixo, o trecho em questão:

"É possível morrer. Laura se indaga, de repente, como ela – ou qualquer pessoa – pode fazer uma opção dessas. É um pensamento afoito, vertiginoso, meio sem corpo – que se anunciou em sua cabeça, de modo vago, mas distinto, como uma voz estalando numa estação de rádio distante.

Ela podia decidir a morrer.

É uma noção abstrata, luminosa, nada mórbida. Quartos de hotel são onde as pessoas fazem coisas como essa, não é verdade? É possível – talvez até mesmo provável – que alguém tenha posto fim à sua vida bem aqui, neste quarto, nesta cama. Alguém que disse: Basta, chega; alguém que olhou pela última vez para estas paredes brancas, para este teto branco e liso. Percebe então que, ao entrar num hotel, a pessoa deixa as particularidades de sua própria vida e entra numa zona neutra, num quarto branco e limpo, onde morrer não parece tão estranho.


Talvez pudesse ser profundamente reconfortante; talvez haja uma libertação: simplesmente partir. Dizer a todos eles: Não consegui administrar, vocês não fazem idéia; eu não queria mais tentar. Talvez haja, ela pensa, uma beleza tenebrosa nisso, como um campo de gelo, ou um deserto de manhã bem cedo.

Ela poderia ir, por assim dizer, para essa outra paisagem; podia deixá-los todos para trás – o filho, o marido e Kitty, todos eles – nesse mundo sofrido (nunca mais voltará a ser sadio por inteiro, nunca mais voltará a ser de todo limpo), dizendo um para o outro e para quem perguntasse: Nós achávamos que ia tudo bem com ela, achávamos que suas mágoas eram mágoas comuns. Não tínhamos idéia.

Ela acaricia a barriga. Eu nunca. Diz as palavras em voz alta, no quarto limpo e silencioso: “Eu nunca”. Ela ama a vida, ama com todas as forças, pelo menos em determinados momentos; e estaria matando também o filho. Estaria matando seu filho, seu marido e a outra criança, que ainda se forma dentro dela. Como poderia, qualquer um deles, se recuperar de algo assim? Nada do que possa fazer como mãe e esposa viva, nenhum lapso, nenhum acesso de raiva ou depressão encontraria um paralelo. Seria, pura e simplesmente, mau. Abriria um buraco na atmosfera, através do qual tudo aquilo que criou – dias pacatos, janelas iluminadas, a mesa posta para o jantar – seria sugado.

De todo modo, está satisfeita em saber (porque de alguma maneira, de repente, ela sabe) que é possível parar de viver. Há conforto em encarar toda a gama de opções; em considerar todas as escolhas, sem medo e sem malícia. Ela imagina Virginia Woolf, virginal, desequilibrada, derrotada pelas exigências tremendas da vida e da arte; imagina-a entrando num rio com uma pedra no bolso. Laura continua acariciando a barriga. Seria tão simples quanto entrar num quarto de hotel. Seria simples assim."

Platéia, uma salva de palmas.

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